Dez anos da tragédia da boate Kiss: parentes e sobreviventes protestam contra impunidade

Walney Rosa
janeiro 27, 2023 - 2 anos atrás

Elisa Martins – O Globo

As colagens de frases e fotos da Praça Saldanha Marinho até o prédio onde funcionava a boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, lembram as ausências que ecoam há dez anos no dia a dia das famílias que perderam filhos e amigos na tragédia. No dia em que o caso completa uma década, pais, mães e familiares fazem homenagens e vigílias no caminho que leva à discoteca cujo incêndio iniciado pelo uso de fogos de artifício em um show na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 ceifou a vida de 242 jovens e deixou mais de 630 pessoas feridas.

Parentes e sobreviventes se esforçam para manter a memória viva, enquanto também protestam contra a impunidade no processo que tramita na Justiça.

Após anos de imbróglios jurídicos, em dezembro de 2021 um júri decidiu pela condenação dos quatro réus – dois proprietários da boate Kiss e dois integrantes da banda que fazia o show com fogos de artifício. Mas, em agosto do ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul atendeu aos pedidos das defesas e decidiu anular a decisão, para surpresa e revolta das famílias.

— O sentimento mais forte é de indignação. Impotência. Humilhação. Quem acompanhou o processo sabe que o que aconteceu foi causado por pessoas irresponsáveis que assumiram o risco inúmeras vezes — diz Paulo Carvalho, membro da diretoria da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e pai do jovem Rafael, que estava naquela noite na boate.

Dez anos depois da tragédia – que Carvalho chama de “crime” causado por “omissão e ganância” ou “tragédia anunciada” – ele diz que as famílias que se reencontram hoje nas ruas de Santa Maria para lembrar a data não querem só resgatar o passado, mas prevenir casos similares no futuro:

— Há algumas pessoas que nos criticam, dizendo que queremos vingança, que deveríamos esquecer, deixar em paz. Mal sabem que a luta não é pelos nossos filhos. Eles não voltam. É para que não seja em vão. Para que não se repita. Para que haja punição, porque a punição traz receio e, com isso, conscientização.

Ao lado de cultos ecumênicos e homenagens, além da exibição do 1º episódio do documentário “Boate Kiss – A tragédia de Santa Maria” (Globoplay), a AVTSM, o Coletivo Kiss: Que não se repita e o Eixo Kiss do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria prepararam uma programação com diversos painéis de discussão. Entre eles, um intitulado “Por que a prevenção vale a pena?”, com especialistas em segurança e proteção contra incêndios.

No caso da boate, fatores como a falta de sinalização de emergência, a obstrução da saída e falhas em extintores de incêndio são apontados como erros cruciais que contribuíram para o número elevado de vítimas.

— Mais que um evento pontual, nossa programação é uma campanha para ser levada ao longo do ano todo, para resgatar a memória e reconciliar Santa Maria com sua própria História – disse Gabriel Rovadoschi Barros, de 28 anos, sobrevivente da tragédia e atual presidente da AVTSM, em coletiva na quinta-feira em Santa Maria. — Quando nos perguntam “qual é seu envolvimento com a tragédia?”, responder “É porque sou de Santa Maria” deveria ser suficiente para todos entenderem o pertencimento, a dimensão da dor. E se co-responsabilizar por levar essa história adiante.

Boa parte das homenagens e encontros acontece na Praça Saldanha Marinho, no Centro de Santa Maria. Foi ali que, há dez anos, muitos pais se reuniram enquanto aguardavam notícias dos filhos que não respondiam às tentativas de contato.

Nesta semana, familiares colaram fotos e frases que, segundo os responsáveis pelos atos, “circulam socialmente há dez anos de maneira hostil, com julgamento moral, dirigidas às pessoas que integram os movimentos de luta da Kiss por memória e justiça”. A ideia, dizem, é abrir caminho para as pessoas se reposicionarem frente à tragédia. São questionamentos como “Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”; “Silenciar é descansar?” ou “Por que falar na Kiss?”.

— É um trauma coletivo — disse a psicóloga Vanessa Solis Pereira, do Eixo Kiss, em coletiva em Santa aria. — É nossa marca, nossa ferida. Precisamos assumir isso para seguir em frente. E juntos.

A ideia é que, no futuro, o prédio onde funcionava a boate seja transformado em memorial. Antes, porém, os familiares e sobreviventes defendem que o processo na Justiça seja, finalmente, concluído.

Expectativas com o julgamento

O anulamento da decisão de condenação pelo júri é uma ferida aberta entre familiares e sobreviventes da tragédia. Ao longo dos anos, o processo teve uma série de adiamentos e apelações que adiaram o julgamento. Em 2017, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul chegou a decidir que não levaria os réus a júri popular – a decisão só foi revertida em junho de 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O julgamento chegou a ser marcado para março de 2020. Aí veio a pandemia. A definição da data só voltou a ser discutida em julho de 2021. Depois, o local foi transferido de Santa Maria para o Foro Central de Porto Alegre, o que também desagradou familiares de vítimas.

O julgamento começou em dezembro do mesmo ano. Depois de dez dias, o júri decidiu pela condenação dos quatro réus, com penas de 18 a 22 anos de prisão. No início de agosto do ano passado, porém, veio o que familiares chamaram de “o dia em que a Justiça sucumbiu no Rio Grande do Sul”.

— O Tribunal de Justiça julgou os recursos de defesa que pediam anulação da condenação, e por 2 a 1 os desembargadores entenderam que algumas situações haviam gerado prejuízo ao processo, e o júri foi anulado — lembra Pedro Barcellos, advogado da AVTSM.

A associação e o Ministério Público entraram com recursos especiais e extraordinários no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal e aguardam resposta. O apelo aos tribunais superiores é a cartada final de familiares e vítimas depois de dez anos de espera e de um alívio temporário com a decisão de dezembro de 2021.

— Até pela celeridade e preocupação com o tema, acreditamos que pode haver um julgamento ainda este ano — opina Barcellos. — Estamos buscando todos os meios para reverter essa decisão.

O advogado acompanha o luto e a luta de familiares e sobreviventes desde o começo e diz que a demora no processo os deixa dispostos a uma tristeza “quase que permanente”.

— A data (os dez anos) mexe bastante com familiares, pais, sobreviventes. A sensação é que tudo é difícil, complicado. Mas a esperança da mudança persiste. Não vamos desacreditar da Justiça.

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